quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

De quando quase espantei o fantasma de Chico Toicinho sem saber que se tratava de tão ilustre figura

Estava aborrecido de ler por tantas horas a fio no meu quarto de hotel, onde eu morava provisoriamente, no centro da cidade. Assim que o fluxo de caixa se tornasse promissor me mudaria para outro lugar.

Peguei a pilha de livros que uma editora tinha me dado recentemente para resenhar. Eram vários heróis meus, nomes de peso da literatura brasileira e mundial, coisas que eu lia com um prazer indescritível, sem nem pensar no tempo que a tarefa consumia.

A pilha de livros depositei na mesinha de centro e lá permanecia eu num confortável sofá, lendo no hall do 5° andar, o andar do meu quarto. Noite alta, ninguém me perturbaria àquele horário. Não haveria zum zum zum no corredor pois havia poucos hóspedes alojados.

Lia tranqüilamente quando me surpreende o fantasma do Bukowski, um maldito poeta e escritor maldito teuto-americano. Ele costumava entrar no meu quarto sem autorização e tomava emprestadas algumas das coisas que eu lia e bebia a cerveja do frigobar.

Como ele tinha aprendido português me escapava. Acho que ele, sem trocadilho, buscava alimento para o espírito, além do mais se aquele era um fantasma que bebia, como ele adquiriu conhecimento de nosso idioma parecia uma questão irrelevante.

Sabia apenas que lia e comentava comigo acerca dos estilos e vozes de cada um dos autores. E eu conversava animadamente com ele sempre que aparecia. Ao ser indagado acerca do pós-vida de um escritor ele falava da turma que, tirando Hemingway e Bocaccio, conseguia ser incrivelmente chata, principalmente os poetas narrativos e alguns novelistas russos. Nada diferente de uma reunião da ABL, com a vantagem de que no paraíso dos escritores alguns deles pareciam mais vivos que os nossos imortais.

Escolheu um dos volumes mais grossos de cima da mesinha, que deve ter agradecido pelo peso retirado, e imaginei que ia reter sua atenção por um bom tempo, impedindo-o de interromper a minha leitura com conversas literárias.

Sou o mais exigente quanto ao ambiente propício para ler, detesto salas com mais de uma pessoa, com a TV ligada nem pensar. Música ou qualquer outro som só numa altura limítrofe entre o infra-sônico e o ruído de fundo, por isso sou tão chato e não leio em bibliotecas; minha atenção se vai com um alfinete caindo e sempre tem algum celular soando um toque estapafúrdio.

Ele pega uma cerveja no meu quarto e se instala confortavelmente em outro sofá na minha frente. Fora o virar das páginas ele não faz ruído algum, ainda bem. Depois de tantas vezes em sua companhia, começava a me acostumar com ele, a ler tendo alguém mais a minha volta.

Que cena! Eu e o velho Buk lendo ali, mal percebemos quando surge um sujeito magro e de cabelos curtos, de jeans e camisa azul, que subia as escadas, e parou no nosso andar. Ele viu a pilha de livros dos temas mais variados, se aproximou da mesinha de centro e mexendo na pilha escolhe um deles e sai.

“Ei, onde que tu tá pensado que vai com esse livro?” foi assim que o repreendi.

“Vou ler esse aqui”, me respondeu o sujeito.

“Vai ler merda nenhuma! Nem me pediu autorização e eu não te emprestei. Isso aqui não é biblioteca pública. Esses daqui tu não vai encontrar nas livrarias desse arquipélago nem que a vaca tussa.”

“Eu pensei que podia ler”, diz ele.

“Pode o escambau, seu folgado. Nem te conheço e já vai tomando liberdade... Se ainda fosse sentar aqui e pedir emprestado primeiro.”

“Todos esses são teus?” indagou o recém chegado.

“Sim. Todos eles. Por quê?”

“Até esse que o cara aí tá lendo?” continuou ele.

“Sim,” respondi de novo secamente.

“Não sabes quem sou?” me pergunta ele. Reparei que não havia em sua voz aquele tom nojento de carteiraço, que as pessoas usam para salientar a sua importância e notoriedade.

“Claro que não, nunca te vi na minha vida.”

“Sou um fantasma como ele. Talvez já tenha lido algo que escrevi, eu fui filósofo. Francis Bacon era o meu nome.”

“Ah, tá! Desculpa, Chico. Fica a vontade, não te reconheci sem a peruca branca de cachinhos.”

E assim ficamos os três, um vivo e dois fantasmas, lendo, quietos, até o sol brilhar com força lá fora, com o movimento da cidade adquirindo intensidade e os garçons e auxiliares de cozinha iniciarem o serviço de café da manhã no grande salão de refeições do último andar.

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