quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Cantor de refrão

Duvida-se muito que algum executivo de gravadora estivesse sacolejando junto com os demais passageiros daquele ônibus, mas a voz que entoava uma versão parte cantada, parte assobiada de La vie em rose, outrora imortalizada por Edith Piaf e posteriormente despedaçada pelo “talento” de Grace Jones, vinha do fundo do coletivo e, às vezes, se erguia acima do volume do motor, sendo impossível ignorá-la, dividindo assim a opinião dos passageiros. A maioria ria. Um ou outro protestou, exigindo a retirada do humilde artista. A cobradora pediu que cantasse mais baixo, procurando mentalmente alguma portaria ou lei que vedasse a cantoria em voz alta no ônibus.

O sujeito era baixinho e abusava dos vibratos como todo cantor de música sertaneja. Quase nunca passava do refrão, de forma que as canções tornavam-se circulares. Um verso e o refrão. Outra estrofe e o refrão. Quando cansou de cantar em “francês”, apelou para árias em italiano.

Uma ou outra palavra acabava soando em espanhol, evidenciando como as duas línguas podiam ser semelhantes. Aí, nesse momento, mostrou como era versátil, revelando seus dotes de tenor.

Atendendo a pedidos, no melhor exemplo do mais puro enrolation, arriscou uma música de Bob Marley. Incrível como nenhuma palavra daquele seu inglês particular existia. A métrica, no entanto, era respeitada com rigor acadêmico. Justificando seu apelido, no refrão foi quando realmente respeitou o vernáculo de Shakespeare. Antes de desembarcar um menino se despediu: “Tchau, cantor”. Feliz pelo talento reconhecido desejou que o menino fosse com Deus. Mais um pouco e era sua parada. Um outro sujeito desceu com ele.

Na verdade o amigo do cantor estava muito triste, pois não tinha um teclado por perto para acompanhar o companheiro. Talvez por isso poucos tenham percebido como digitava um piano imaginário. Se já julgavam o amigo maluco por cantar sozinho, imagina o que diriam dele.

O sonho de tornarem-se uma dupla famosa foi consumido sem nunca ter chegado perto de se realizar. Nem uma mísera apresentação em um programa, desses que o apresentador usa chapéu e tudo mais, em algum canal local no cretiníssimo horário dos primeiros raios de sol eles conseguiram. Mas tudo bem, eles não esquentavam. A platéia cativa do coletivo já era o suficiente para a ambição deles.

2 comentários:

Anônimo disse...

Li alguns de seus contos. Você escreve muito bem. Olha só, eu participo de um projeto literário que produz mensalmente a revista eletrônica SAMIZDAT. Se você quiser dar uma olhada, esse é o endereço do blog: www.samizdat-pt.blogspot.com. Além disso, todo dia 11 nós abrimos espaço para um convidado publicar um texto em prosa, e gostei particularmente deste. Em todo caso, fica o convite: você gostaria de publicar em nossa revista? Assim podemos fazer uma troca de "favores literários" - você ajuda a divulgar a revista e nós teremos sua participação, com um texto muito bem escrito.

Sobre este conto, mais uma vez, meus parabéns. Você é muito bom!

Anônimo disse...

Ah, caso você aceite, meu email é v.camargo.junior@gmail.com

Um grande abraço.

Volmar Junior.