segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

A máquina de Newton

Entrou sorrateiramente, na madrugada, no laboratório de Newton. Sim, o próprio. Soubera que o famoso cientista trabalhava em algo grande que escondia de seus colegas da Real Sociedade. Não imaginava o que poderia ser o volume oculto por baixo de um grande lençol. Um maquinário que nunca tinha visto antes, parecia uma carruagem com grandes alavancas.

Sentou no espaço destinado ao condutor, se fosse aquilo um meio de locomoção. Olhou os mecanismos com curiosidade e não sabia o que fazer. Imóvel daquele jeito não parecia ser de grande serventia para a humanidade. Quando ia descer do aparelho, perdeu o equilíbrio e acabou acionando uma das alavancas.

O cenário científico se transformou, em um clarão, numa paisagem urbana como ele nunca tinha visto. Grandes torres, pessoas com pressa andando em trajes estranhos, carruagens feitas de lata em movimento sem o auxílio de tração animal e nada do verde que caracterizava a sua cidade. Atrapalhando o trânsito estava sua máquina e para evitar ser atingindo pelos veículos que vinham em sua direção, desceu dela.

- Onde estou? perguntou para uma mulher que falava ao celular. Essa nem se dignou a responder. Perguntou para outro sujeito. A resposta o desconcertou. Ocorreu-lhe de perguntar o ano, mas o homem já se afastara. Perguntou para outro transeunte. A resposta o deixou ainda mais chocado.

- Uma máquina do tempo! Era isso!

Sentia sede, precisava de álcool para pôr os pensamentos em ordem. Tinha umas moedas de ouro nos bolsos. Pensou nas possíveis mudanças no sistema financeiro. Foi até uma loja de penhores onde conseguiu dinheiro o bastante para se viver bem por alguns dias.

Percebeu que suas roupas eram diferentes demais das outras pessoas e precisava fazer algo a respeito. Entrou numa loja GAP, comprou jeans, jaqueta de couro e camiseta, diminuindo assim seu estoque monetário. Em seguida se dirigiu até um pub. Sentou ao balcão e o barman trouxe um caneco de cerveja. Experimentou o líquido amarelado e estranhou a temperatura.

- Mas isso está gelado!

- Se preferir te sirvo um mijo bem quente, disse um freqüentador sentado ao seu lado.

- Cale-se, Clyde!, disse o barman.

- Me paga uma, estranho?, indagou uma loira que se sentou do seu lado.

- Certamente que sim, nobre donzela! Qual é o vosso nome?

- Joyce.

Depois de beberem por mais algum tempo, ela se acostumou com o jeito arcaico dele se comunicar. Sugeriu que saíssem de lá. Por idéia dela também foram até sua casa não muito longe dali.

Lá ele teve uma pequena amostra do sexo descompromissado do nosso século e não poderia dizer que não gostou. Considerou incrível a desnecessidade da corte prolongada, de todos os jogos de amor para a obtenção de favores sexuais. Pensou que se tratava de uma prostituta e não se importava com isso. Quando iam recomeçar uma nova rodada erótica, escutaram um barulho na porta do andar de baixo.

- Rápido, você precisa sair daqui!, disse ela, jogando as roupas para ele.

- Devo-te algo pela magnífica tarde de prazeres?

- Seu filho da puta, eu não sou uma vagabunda.

Nisso entrou o marido de Joyce no quarto. Ele correu atrás do visitante de séculos passados.

- Se entendi bem, o senhor gostaria de um duelo para reabilitar sua honra?

- Duelo o teu rabo. Eu vou te matar é agora.

- Pega ele, meu amor! Me chamou de puta!, incentivava a esposa infiel.

Depois de correr como um louco até faltar o fôlego e escapar do marido ultrajado, pensou em algo que ainda não tinha lhe ocorrido, como faria para retornar para casa. A máquina ficara para trás naquela avenida movimentada. Com certa dificuldade conseguiu encontrar o ponto exato aonde chegara ao tempo presente. Descobriu que sua máquina do tempo havia sido confiscada pelo departamento de trânsito.

- E como faço para chegar a tal depósito, senhor?

O dono da banca de revistas explicou-lhe o caminho, o metrô a tomar e que precisaria de dinheiro para reaver aquele trambolho. Chegou no depósito em trinta minutos. Interpelou o guarda na guarita e foi indicado que falasse com o sargento Mulwroney na recepção.

Recebeu desse um formulário para preencher. Quando chegou no campo “data de nascimento”, não se conteve e riu sozinho. Devolveu a papelada preenchida para o sargento e foi informado do valor da multa por ter abandonado a estranha engenhoca. Mesmo sem dinheiro, pediu para ver a máquina do tempo.

- Deixe-me ver se há avarias nela.

- Vá em frente, disse secamente Mulwroney.

Sentou-se atrás dos controles e começou a mexer nas alavancas de forma aleatória. Nada! Nem um blip que o mandasse de volta ao seu tempo.

- Ei, agora saia daí!, ordenou o sargento.

- Apenas mais um instante.

Ele continuou a mexer feito um maníaco nas alavancas e nada ainda acontecia. Para espanto de Mulwroney, o aparelho e seu ocupante desapareceram em uma fração de segundos.

- Tenho de parar de beber!, falou o policial. Podia jurar que...

Assim que parou de esfregar os olhos a máquina reapareceu na sua frente. O viajante do tempo estava de volta ao presente após uma breve estada em um período que não soube precisar qual era.

- Desça já daí!

- É uma máquina do tempo, não vês? Caso não acreditas, senta-te aqui e testemunha com teus próprios olhos!

- Mas com todos os diabos!, praguejou o sargento, puxando o estranho pelas roupas e o algemando contra um carro apreendido estacionado no pátio.

- Máquina do tempo?! Conta essa pro diretor do sanatório, seu lunático, que é pra lá que você vai.

Mesmo com toda a convicção de quem fala a verdade, não conseguiu dar provas de sua sanidade ao psiquiatra que cuidou do seu caso. Afinal quem em sã consciência acreditaria em histórias fantásticas de viagens no tempo? Ficou algum tempo recluso na ala dos mais perigosos.

Ninguém acreditava que o aparelho realmente fizesse o que ele alegava fazer, mas por via das dúvidas uma equipe do serviço secreto ficou encarregada de fazer experimentos. Eureca! Descobriram como controlar aquela complicada geringonça, era possível chegar a uma determinada data com uma margem de erro de seis horas. Logo ele foi reabilitado perante a sociedade.

Participou de dezenas de programas de entrevistas, contratou um empresário. Arriscou-se na carreira musical com um disco que foi sucesso de vendas. No entanto, algo lhe faltava. Tinha saudades de seus contemporâneos, das festas na corte, da caça à raposa, das frondosas macieiras do quintal de Newton.

Transformou todo o saldo de sua conta bancária em ouro em barras e pediu para voltar para o seu ano de origem, no que foi atendido, depois de ter que molhar a mão de alguns sujeitos que controlavam a máquina do tempo.

Reencontrou vários amigos no Marreco Cinza, a taverna que freqüentava e viu que nada mudara desde sua partida. Elwin, o manco, continuava tão coxo como sempre e Godspell, tão fanfarrão como antes. Quis lhes contar os prodígios do mundo moderno. Julgou que não estavam preparados para aquilo, talvez um homem em toda a Inglaterra o compreendesse, mas que não o perdoaria jamais por ter lhe subtraído o que seria sua maior descoberta.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Conto natalino

Tínhamos voltado de Melo na sexta e na segunda, véspera de natal, na metade do caminho para Pelotas, eu e Rosana decidimos parar o carro no acostamento. Decidiríamos se continuávamos até Porto Alegre e chegaríamos a tempo da ceia de natal numa casa de uma amiga ou prima. Ou se retornávamos para Jaguarão e seguiríamos viagem no dia seguinte, adiando pela milionésima vez a volta para casa.

Adianto desde já que passei o natal em Jaguarão. O que aconteceu? Quando finalmente estava tudo pronto para Florianópolis e que dessa vez não passava, depois de uma semana extra na cidade depois da segunda apresentação das gurias, Joselo bate o pé, decide que vai ficar e ir para Melo no outro dia, sozinho. E eu, no meio dessa crise conjugal de graves proporções.

Sem chorar mas visivelmente infeliz Rosana resolve pegar a estrada de qualquer forma, já era 11 da manhã do dia 24. Paramos em um restaurante para mandar para dentro um prato de bife com ovo antes de seguir viagem. Senti que ela não queria ir deixando um assunto pendente. Ainda que não agüentasse mais tanto atraso, fiquei com pena dela nessa situação.

Corta de volta para o acostamento: olhei para ela e ela me olhou e voltamos para Jaguarão. Ela falou que ia improvisar alguma ceia natalina e eu imaginando o pessoal lá em casa, me esperando depois do milésimo alarme falso de meu regresso.

Esse natal em família para mim seria uma coisa bem importante. Eu havia passado um mês fora de casa, com raiva do mundo e quando tinha voltado nem tive tempo direito de reforçar minhas relações com meus pais pois havia embarcado nessa legítima odisséia no começo de dezembro com previsão de duração de uma semana e que já entrava em sua terceira semana.

A tal ceia natalina consistia de um pedaço de paleta de ovelha que ela descolou antes do armazém fechar, lá as padarias e açougues fecham as oito da noite. Não me recordo de ter algum dia experimentado carne de ovelha e fiquei imaginando seu sabor. Vi pouca carne em volta daqueles ossos compridos e curvos.

Os dois mal se falaram quando se reencontraram e todo o pessoal da cidade estranhou a nossa volta. Devem ter compreendido que passar o natal na estrada devia ser uma bosta e que acertamos em retornar.

Por volta das nove a ovelha foi posta no forno para assar e eu em cima, acompanhando e torcendo para que ela ficasse pronta logo. O bife do almoço, a última refeição do dia, não estava no meu organismo há horas.

Um sujeito chamado Jardel, primo do tipo maluco da Rosana, apareceu e foi convidado a se juntar à mesa naquela noite. Ele fumava um mata-rato de doer os pulmões e bebia por profissão, era pescador e me contou alguns causos do mar que ele e amigos enfrentaram. Ao saber que eu morava em Santa Catarina puxou do bolso uma história que se passou com ele no litoral norte do estado. E nada da ovelinha sequer ficar dourada.

Não satisfeitos em fazer o natal do primo, o casal ainda teve tempo de ir providenciar um Papai Noel para um casal de amigos uruguaios que tinham dois filhos pequenos e que iriam receber o presente das mãos do bom velhinho em pessoa, me deixando com Jardel que me contou vários podres da prima. Não esquenta, R., não vou divulgar o que sei.

Detalhe: quando o Brasil adota o horário de verão, fica-se uma hora adiantado em relação ao horário oficial do país vizinho. Portanto eles foram chegar com o homem vestido de vermelho e gorro na cabeça por volta da 1 da manhã. Eu já tinha me impacientado quando os vi passar na esquina da outra quadra para entrar na casa dos amigos. Era com certeza o pior natal de minha vida.

Deixei Jardel tomando conta da ovelha no forno e fui até a casa dos uruguaios, com a maior cara de fome. Chegando lá todos extremamente simpáticos, desde os pais do cara até os pais da mulher, me mostraram o caminho das cervejas e as cestas com frutas e queijos e presuntos cortados em cubinhos e espetados em palitinhos. Meu natal estava salvo, por ora.

Conversei um bocado com o pai de Roce, que era da Galícia. Ele me explicou que vários uruguaios eram descendentes de galegos e me contou piadas dessa parte da Espanha, que eram tratados calorosamente pelos uruguaios da mesma forma como vemos os lusitanos do outro lado do Atlântico.

Fizemos um intercâmbio de piadas. Eu falava português e espanhol e todos me elogiavam, eu creditava isso à cerveja. Rosana e Jocelo voltaram para o primo e a ovelha que a essa hora já devia ter passado do ponto e me deixaram lá depois da entrega dos presentes.

Gostaria de poder ver a minha própria cara ao testemunhar aquele ritual de entrega de presentes com direito a performance do velho Noel em pessoa. Todos ganhavam presente menos eu, é óbvio. Devia haver alguns me esperando se algum dia voltasse para Florianópolis. Faltava menos de uma semana para a virada do ano e já imaginava meu Reveillon em Jaguarão.

Comi mais um pouco e o sujeito que fazia as vezes de Papai Noel ficou para comer conosco e beber na sala. Nessa hora a barba era afastada e voltava para o lugar caso algum fedelho aparecesse por lá. Ele bem que tentou contar histórias deprimentes para alegrar nosso natal mas felizmente ele teve que se ausentar.

Fiquei para a sobremesa e fui-me embora perto das 2 e meia da madrugada, cumprimentando todos e agradecendo a acolhida calorosa, meu estômago mais agradecido ainda. Por incrível que pareça ainda dava tempo de encontrar meus conhecidos da cidade e pegar o começo da festa de natal no clube Jaguarense, festa que durou até seis da manhã quando começaram a abrir as janelas do salão que costuma ser menor em outras nas festas em fins de semana comuns.

No almoço do outro dia é que fui sentir o gosto daquele pedaço de ovelha, e ligar para casa para dizer que no outro dia estávamos voltando... No dia 27 finalmente fomos embora de Jaguarão. Nunca mais pus os pés lá.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Cantor de refrão

Duvida-se muito que algum executivo de gravadora estivesse sacolejando junto com os demais passageiros daquele ônibus, mas a voz que entoava uma versão parte cantada, parte assobiada de La vie em rose, outrora imortalizada por Edith Piaf e posteriormente despedaçada pelo “talento” de Grace Jones, vinha do fundo do coletivo e, às vezes, se erguia acima do volume do motor, sendo impossível ignorá-la, dividindo assim a opinião dos passageiros. A maioria ria. Um ou outro protestou, exigindo a retirada do humilde artista. A cobradora pediu que cantasse mais baixo, procurando mentalmente alguma portaria ou lei que vedasse a cantoria em voz alta no ônibus.

O sujeito era baixinho e abusava dos vibratos como todo cantor de música sertaneja. Quase nunca passava do refrão, de forma que as canções tornavam-se circulares. Um verso e o refrão. Outra estrofe e o refrão. Quando cansou de cantar em “francês”, apelou para árias em italiano.

Uma ou outra palavra acabava soando em espanhol, evidenciando como as duas línguas podiam ser semelhantes. Aí, nesse momento, mostrou como era versátil, revelando seus dotes de tenor.

Atendendo a pedidos, no melhor exemplo do mais puro enrolation, arriscou uma música de Bob Marley. Incrível como nenhuma palavra daquele seu inglês particular existia. A métrica, no entanto, era respeitada com rigor acadêmico. Justificando seu apelido, no refrão foi quando realmente respeitou o vernáculo de Shakespeare. Antes de desembarcar um menino se despediu: “Tchau, cantor”. Feliz pelo talento reconhecido desejou que o menino fosse com Deus. Mais um pouco e era sua parada. Um outro sujeito desceu com ele.

Na verdade o amigo do cantor estava muito triste, pois não tinha um teclado por perto para acompanhar o companheiro. Talvez por isso poucos tenham percebido como digitava um piano imaginário. Se já julgavam o amigo maluco por cantar sozinho, imagina o que diriam dele.

O sonho de tornarem-se uma dupla famosa foi consumido sem nunca ter chegado perto de se realizar. Nem uma mísera apresentação em um programa, desses que o apresentador usa chapéu e tudo mais, em algum canal local no cretiníssimo horário dos primeiros raios de sol eles conseguiram. Mas tudo bem, eles não esquentavam. A platéia cativa do coletivo já era o suficiente para a ambição deles.

Um caso raro de vingança

Eu sou o maior especialista em gozar com o pênis alheio. Não, nada disso que o senhor ou a senhora estão pensando. Não sou homossexual, nada contra também. Não se trata muito menos de um dom adquirido. Eu, controlar a ejaculação alheia. É que já me acostumei a nem ter vida própria. Vivo através dos outros. Talvez por ser tão bom ouvinte eu tenho algumas pessoas que me tratam como confidente ou eu tenha me revelado um bom ouvinte para que os outros me contasse seus segredos. Não posso ir muito longe de casa. Sexo era muito bom, mas agora estou impedido de fazer. Maldita radiação. As baratas sobrevivem, mas meus culhões e cacete não resistiram. Minhas pernas também. Só a parte posterior de meu corpo não está deformada e inutilizável. Às vezes uso o que me contam para obter vantagens. Aproveitador? Não apenas vivo com o que me restou. Nem sou tão amargo, acho que eu já caminhava para isso antes de... Não interessa nada a meu respeito. Eu ajudava adolescentes desajeitados e outros tantos adultos confusos a conseguirem as melhores conquistas e destruía tudo depois em um piscar de olhos. Durante algum tempo essa foi minha ocupação principal desde que fiquei assim. Muito tempo livre nas mãos dá nisso. Por alguns dos que aconselho chego a nutrir algo que se poderia chamar de afeto, com esses sou mais gentil na hora de arrasá-los. Ninguém espera isso de mim, o que torna tudo mais fácil. Escuto pacientemente os seus desabafos. Finjo me preocupar, dou meus sábios conselhos e vejo tudo ruir posteriormente. As ondas de prazer que percorrem minha mente quando vejo meus planos funcionando é o que mais se aproxima de um orgasmo. Contudo, fui descoberto. Três das pessoas que arrasei agora decidem meu destino na sala ao lado.

O que eu poderia ter feito de tão ruim para formarem a Associação Nós Odiamos..., alguém deve estar se perguntando. Eu respondo.

O primeiro. O cabeça desse pequeno movimento é Andreas J. Ele era gago quando criança. Tratou-se com uma fonoaudióloga. Sua auto-estima aumentou e havia se tornado um profissional bem respeitado, apesar de eu tê-lo induzido a cometer uma série de falcatruas cuja autoria dificilmente seria comprovada. Tolo ganancioso. Assim como não há cura para minha condição peculiar, não existe golpe infalível. Sua bela esposa o deixou, seus amigos se afastaram dele e seu mundo ruiu. Um dos meus melhores trabalhos sórdidos e motivo de orgulho. Sim, porque até alguém desprezível como eu tem orgulho. Acho que até sei o que o impediu de tomar a própria vida, a doce chama da vingança. A mesma que mantenho acesa.

A outra era Felícia G. Uma bela bailarina. Seu corpo perfeito, sempre cobiçado por muitos, já havia sido possuído por mim. Antes de eu ter ficado como fiquei. Bela trepada, elástica, flexível, capaz de realizar peripécias sexuais inacreditáveis e era ninfômana. Informação muito relevante que me ajudou a aniquilá-la. Eu a fiz acreditar que havia contraído a mesma doença miserável que me aflige, a mesma que teria me levado ao estado em que me encontro e que deveria fazer o que eu fiz, comunicar a quem de direito da possível contaminação. Assim ela o fez. Acredito que se possa imaginar o pânico disseminado entre seus parceiros de leito, que não eram poucos.

Por último temos Arnaldo M. Um parvo completo, sua queda foi pouco prazerosa para mim, uma vez que sua idiotia só foi de grande valia para derrotar dois pássaros como uma pedra apenas.

Como os três, sem qualquer relação entre si, se reuniram e chegaram até aqui, elaborando esse plano de vendetta, posso apenas intuir, mas o adiantado da hora não me permite divagar sobre isso. Dentro de instantes espero que eles irrompam por aquela porta e levem a cabo sua vingança. Se conseguirem conduzi-la com perfeição resta o consolo de que tenham elaborado algo cruel e requintado, digno de minha mente. Conhecendo-os como os conheço posso garantir que não será nada agradável, inclusive devem pecar pela falta de originalidade e engenho. Tudo bem. Não me encontro em posição de fazer grandes exigências.

Os três entram no meu cárcere improvisado. O mais imbecil tem uma arma na mão e a aponta na minha direção. Será que não vê que um simples estilingue já me subjugaria com facilidade.

“Vocês sabem como é perigoso um idiota com uma arma mão”, é assim que os provoco.

“Eu vou matar esse lixo filho da puta,” foi a resposta do imbecil.

Felícia poupa minha vida: “Ninguém vai matar esse nojento... ainda.”

“Quer saber o que temos pra você?”

“Nem tenho idéia, Andreas.”

“Tua morte vai ser lenta, muito lenta.”

“Alguém viu filmes de mafiosos demais.”

“Levanta esse porra e coloca na cadeira.”

“Até fala como mafioso,” continuo provocando, nada tenho a perder. Como será que fosse o velho Andréas gaguinho teria dito isso.

Arnaldo atira na minha perna. Nada pior do que um idiota que se dói com ofensas a terceiros. Nem sinto nada, mas vejo o sangue escorrendo. A cor dele não é das mais saudáveis. Preto gangrena. Meu Deus! Eu estou mesmo podre por dentro.

“Abaixa essa arma, seu idiota.” É a ninfomaníaca ordenando. “Quer chamar a atenção da vizinhança. Alguns ainda acham esse escroto um cara legal e inofensivo.”

Ela se aproxima de mim e desfere um direto de direita na minha cara, quase me derrubando da cadeira.

“Assim. Tá vendo? Assim ele sente.”

Não chegou a ser um dor muito forte, o latejar é gostoso.

“O que vocês querem comigo? Eu vou processá-los por tentativa de homicídio e cárcere privado,” digo para eles sem alterar a voz.

“Você não vai processar ninguém. Está aqui pra pagar pela merda que transformou as nossas vidas.”

Agora seria o momento apropriado para fazer o monólogo do arquivilão e dizer como as suas vidas medíocres já estavam seladas antes de me conhecerem e tal. Guardo meu fôlego e minha saliva. Tenho um plano arquitetado na cabeça. Preciso apenas que os dois se matam e o imbecil me tire de dentro dessa casa. Seria impossível eu rastejar até a calçada perdendo sangue. Uma vez do lado de fora posso conseguir ajuda. Quem se recusaria a acreditar num infeliz como eu. Provavelmente seria necessária a intervenção da polícia para impedir o linchamento do parvo.

Meu primeiro intento de torná-los inimigos não funciona. Deixo-os apenas mais enfurecidos. Sei agora o que têm preparado para mim e o plano não inclui acabarem comigo ali mesmo. Eles tratam meu ferimento. Quando ela se abaixa perto de mim, me impulsiono para frente e com uma mordida destruo sua orelha esquerda.

“Larga ela,” grita Andréas e toma o revólver de Arnaldo. Antes de ele disparar, consigo empurrá-la com a cabeça na direção da bala, que entra pelas suas costas e a derruba gemendo no chão. Nossos sangues escorrendo no piso se unem.

“O que você fez?” pergunta Arnaldo. “Mata ele duma vez.”

“Arnaldo, você é um imbecil”, fala Andréas, dando um tiro certeiro na cabeça do lento de pensamento. “Esse me irrita tanto quanto você, velho podre.”

“Eu sou podre, você é podre. A nossa matéria orgânica é assim mesmo, bio-desagradável.”

“Como pode fazer piadas com o destino selado?”, indaga ele e dispara. Não dói muito, acho que isso é morrer, é não ter tempo de encerrar a sentença com um ponto final

Superalcóolatra

Quando eu era mais novo lia muito esses gibis de heróis com identidades secretas e super p(h)oderes, e ficava imaginando que seria legal também ter algum poder secreto, só meu, que me fizesse diferente dos demais seres humanos.

Ficava esperando uma picada de uma aranha radioativa (ou geneticamente modificada), um choque de 300 mil volts ou qualquer coisa do gênero que me tornasse um super-herói. Às vezes até torcia que uma desgraça dessas me sucedesse para ver se virava um super super.

A expectativa aumentava. Nada acontecia até que um dia descobri que tinha virado o Capitão Cana depois de me cortar com os cacos de uma garrafa de aguardente de outro planeta. Quanto ao uniforme, depois de um tempo abdiquei da capa pois sempre acabava tropeçando nela na hora de realizar algum feito heróico e me estatelando no chão para o entretenimento dos transeuntes.

Meus superpodres, quer dizer poderes são: bafo de pinga espanta gatuno, super visão dobrada, coragem artificial para abordar belas infratoras, capacidade de fazer amigos de dar inveja ao Max Gehringer, insensibilidade à dor, entre outras. O que muita gente considera ruim para mim se revela de tremenda valia no mundo dos heróis.

Creio que para alguma coisa voltada para o bem eles devem servir. Por enquanto me mantêm meio afastado da sociedade, mas é assim mesmo, a maior parte dos heróis são solitários e incompreendidos. O Superman mora no Pólo Norte, cercado de ursos polares, e isso faz parte do modo de vida de nossa espécie, estou começando a me acostumar com isso.

Na verdade tenho um amigo que penso em convocar para trabalhar como meu assistente, afinal todo o herói que se preze tem que ter um assistente, e batizá-lo de Ganja Boy. Ainda não me decidi porque toda vez que penso nisso acabo me esquecendo no outro dia.

Ele é meio maconheiro e também tem superpoderes assim como eu. Descobriu isso depois de dar um tapinha num legítimo maranhense ao freqüentar a casa de uns hippies que tinham conseguido há pouco a carga, quando o grande espírito da Jamaica emergindo do fumacê cingiu suas têmporas com as folhas da cannabis.

Não será necessário perder tempo desenhando uma máscara pois já usa óculos escuros seja dia ou noite. O seu modelo de figurino ainda precisa ser discutido já que ele propôs roupas de cânhamo e temo que num período de seca ele acabe ateando fogo às vestes e inalando a fumaça de seu supertraje.

Ele está em fase de treinamento, testando e aprimorado as suas capacidades especiais, pode ser que demore mais do que imagino para transformá-lo num paladino da justiça ao meu lado mas quando nos entendermos bem sairemos para combater o mal e as ruas serão um lugar mais seguro para todos.

Cenas de uma guerra de séculos idos

O bombardeio era intenso e o capitão esperava escapar dessa com vida e buscar reagrupar as tropas que se encontravam espalhadas por todo aquele território hostil e desconhecido aos jovens soldados, muitos dos quais mal tinham sido alistados e já foram apresentados ao calor da batalha tendo quase tempo nenhum para treinar.

Os sacos de fenos onde praticavam os ataques com baionetas se revelavam seres humanos que respiravam e como eles, eram filhos, pais ou irmãos de outros seres humanos. No momento eles poderiam e até pensavam nisso, mas a urgência da ação sobrepujava qualquer sentimento que turvasse seus reflexos e manter-se vivo por mais alguns instantes era a única prioridade aceitável.

Para auxiliar a desmotivá-los de tais pensamentos humanistas a lembrança de fatos recentes passavam pelas suas mentes, era impossível esquecer o cenário lúgubre de corpos apodrecendo a céu aberto como a visão mórbida que lhes foi oferecida ao chegarem à entrada da cidadezinha.

O combate corpo-a-corpo é implacável e algo horrendo de se tomar parte, ver o sangue jorrando de feridas recém-abertas tingir os uniformes de rubro-escarlate é bastante diferente de se estar a distanciamento seguro, mirar, atirar e torcer para que aquele tiro tenha sido certeiro e ter neutralizado mais um inimigo obstruindo o caminho da paz.

Os tiros das bocas de fogo disparadas dos navios e da infantaria terrestre do inimigo tinham efeitos desastrosos em vários sentidos: psicologicamente o estrondo de um projétil cruzando o ar era forte o suficiente para fazer até os mais bravos se arrepiarem. O pior de todos, a devastação física ao se ter uma parte da anatomia atingida pela bola de ferro quente que mutilava e despedaçava os corpos de combatentes infortunados, assim como os fragmentos furiosos de quando uma delas explodia no impacto com o chão arrancando pedaços de tudo que se encontra em seu raio de ação.

Nada que pudesse ser lido antes de se enfrentar uma batalha poderia orientar a alma e temperar o espírito. Na verdade confia-se apenas que seu líder saiba o que faz e que os guie ao objetivo com sucesso para que se possa parar por minutos e deixar o corpo fragilizado recuperar o fôlego para mais uma série de enfrentamentos.

Sabiam que estavam lutando contra um exército de homens experientes em matéria de combate, notáveis multiplicadores de mortos na contagem de corpos, veteranos de quantas invasões em locais os mais diversos que os livros de história nem chegariam a catalogar.

Para defender o território foram convocados todos os homens acima de 16 anos que pudessem empunhar uma arma, quer fosse um sabre, um machado, uma lança, um arcabuz ou uma espada, qualquer instrumento que servisse ao nobre propósito de defesa, até que o verdadeiro exército chegasse. Essa milícia foi aniquilada sem exceção e seus corpos ficaram expostos às intempéries, sem sepultura por mais de 2 semanas quando finalmente o reforço tão aguardado chegara todavia atrasado.

Esse exército mesmo bem equipado estava em ligeira desvantagem numérica. As unidades dos invasores dominavam completamente aquelas paragens e estrategicamente bem posicionados ameaçavam estender seus domínios para outras vilas vizinhas, com o mesmo método de ataque e carnificina desenfreada, destruindo mais da metade daquilo que desejavam se apossar.

Esses invasores não compreendiam a língua dos habitantes do lugarejo, assim os clamores e pedidos de clemência para eles não surtiam efeito algum, mesmo que pudessem inferir suas conotações suplicantes.

Somente quando o comandante do exército conclamou a todos que lutassem contra os usurpadores, agregando às suas tropas os homens e meninos das localidades vizinhas é que se pode dar um basta naquele capítulo de quase perda da soberania naquele rincão no litoral sul do país.

Franceses e espanhóis tentaram também de diferentes formas tomar conta daquela região que parecia ter importância somente para os que nela viviam e dela colhiam os frutos que germinavam no fértil solo. Franceses e espanhóis foram também rechaçados de forma igualmente heróica à custa de sangue e coragem inaudita.

A assistente da dentista

A assistente chegava sempre por volta da uma da tarde para fazer a limpeza no consultório, antes da dentista gorda e fumante pôr-se a empregar aqueles instrumentos pontiagudos rotativos nos molares dos infelizes de dentes rotos. Esterilizava os materiais e os posicionava na bandeja ao lado da cadeira todo dia antes da primeira consulta. Às vezes limpava as janelas com um pano, proporcionando instantâneos em posições sensuais.

Ele se posicionava na janela e à distância contemplava a beleza que julgava que ela possuía. A bunda era empinada, redondinha, não muito grande, e os cabelos curtos. Daquela distância o rosto não era totalmente nítido, porém os traços pareciam bastante promissores. Talvez ela não fosse daqui e sim de alguma cidade do interior de ascendência germânica (Pomerode?).

Levavam-no a loucura as várias posições que ela assumia ao tirar coisas de lugares baixos que nada tinham de eróticas. Quase nunca a via por muito tempo na tarde, o sol batia nos vidros da janela e ela fechava as cortinas, só reabrindo quando o sol baixava perto do fim da tarde.

Um dia ele calculou o andar e foi até a porta do consultório da dentista gorda e fumante. A assistente veio atendê-lo atenciosamente, sem qualquer conotação que não fosse de cortesia profissional, e ele marcou uma hora, à noite para fazer um orçamento para remoção dos sisos e ficou de voltar no horário marcado.

Ele já não tinha sequer um dente de siso encalacrado, incomodando as gengivas e o pretexto para ouvir a voz dela funcionara. Foi fácil desmarcar a consulta dando um desculpa qualquer, agora ele já sabia seu nome. Ive.

Acompanhou o término da consulta do último cliente da noite da dentista pela sua janela e quando a luz se apagou no consultório, saiu de seu quarto e foi providenciar um encontro fortuito com Ive na saída do prédio onde ela trabalhava. Esperou um tempo perto do mercado público e pegou-a saindo pela porta ampla que estava fechada à chave, sendo necessária a presença do porteiro da noite para destrancá-la.

Abordou-a gentilmente, refrescando sua memória a respeito de quem era e que lamentava que não ia poder consultar naquela semana. Os dois foram a um bar ali perto e ele pediu uma cerveja e ela, um suco de limão. Ficou intrigado pelo pedido dela. Ele falava mais do que ela e convidou-a para ir até seu apartamento.

Ao entrar ele apontou para a janela de onde sempre a acompanhava em suas tarefas e disse: É daqui que te vejo todo dia. Ela começou a se sentir desconfortável. Queria ir embora, tinha ido longe demais com alguém que não conhecia direito e mal lembrava o nome.

Ele a abraçou e beliscou sua bunda e disse: Do jeito que eu imaginava que seria, firme e deliciosa. Tal como John Fante-Arturo Bandini, ele se ajoelhou na frente dela e disse o quanto a desejava. E beijou-a, ela resistiu a princípio, se entregou aos poucos e não mais repelia a idéia de sentir a língua dele em sua boca. Ele sentiu os seios que cabiam folgadamente em suas mãos por cima da roupa.

Não se conteve e tirou a blusa dela e rasgou o sutiã e pressionou com força seus mamilos. Ela gritou, ele deu um tapa com as costas da mão direita e a jogou na cama e arrancou sua calça, destruiu num ímpeto voraz a calcinha dela. Ele cheirou a calcinha e disse: Vou chupar essa bocetinha, e caiu com tudo.

Ficou excitada, queria e não queria ao mesmo tempo. Ele sentiu a umidade dela como um sinal de aprovação, afrouxou a sua calça e estocou nela com força. Várias vezes, não demorou muito e gozou.

Ele acendeu um cigarro contrabandeado do Paraguai e o cheiro da fumaça a deixou mais enojada. Sentia-se vilipendiada com o estupro semiconsentido – observe a mente machista de uma mulher. Os pulmões intoxicados pela fumaça cancerígena de baixa qualidade que ele exalava com contentamento. Ele removeu a rolha de uma garrafa de vinho barato com a boca e ofereceu para ela num copo enquanto emborcava o líquido rubro direto do gargalo.

Quem bebia era ele, todavia ela que experimentava os efeitos do álcool. O homem, a princípio jovem e bonito, começava a se tornar um homem de 40 e poucos anos, grisalho, até se tornar um velho acabado de 65 anos em sua frente. Ele coçava a bunda e ela se repugnava, dificilmente teria ido com alguém daquele jeito para um local desconhecido e à medida que ele ingeria mais vinho, mais se transmutava naquele ser repelente.

Ela pediu para ir ao banheiro e iria aproveitar para tentar escapar dali antes de ele se transformar numa carcaça decrépita. Ao lavar as mãos a torneira do banheiro se soltou e ela usou aquele pedaço de metal para ferir o homem na nuca enquanto ele se abaixava para pegar uma cerveja no frigobar. O sangue começou a brotar do ferimento e a empapar o carpete, sobrando pouco tempo de pegar sua bolsa e fugir antes que descobrissem o que tinha feito ao sujeito.

No outro dia ao chegar costumeiramente no início da tarde no consultório ela hesitou em chegar à janela. Antes de fechar as cortinas pode notar o homem sorrindo e acenando em sua direção da janela de seu quarto no edifício vizinho.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

De quando quase espantei o fantasma de Chico Toicinho sem saber que se tratava de tão ilustre figura

Estava aborrecido de ler por tantas horas a fio no meu quarto de hotel, onde eu morava provisoriamente, no centro da cidade. Assim que o fluxo de caixa se tornasse promissor me mudaria para outro lugar.

Peguei a pilha de livros que uma editora tinha me dado recentemente para resenhar. Eram vários heróis meus, nomes de peso da literatura brasileira e mundial, coisas que eu lia com um prazer indescritível, sem nem pensar no tempo que a tarefa consumia.

A pilha de livros depositei na mesinha de centro e lá permanecia eu num confortável sofá, lendo no hall do 5° andar, o andar do meu quarto. Noite alta, ninguém me perturbaria àquele horário. Não haveria zum zum zum no corredor pois havia poucos hóspedes alojados.

Lia tranqüilamente quando me surpreende o fantasma do Bukowski, um maldito poeta e escritor maldito teuto-americano. Ele costumava entrar no meu quarto sem autorização e tomava emprestadas algumas das coisas que eu lia e bebia a cerveja do frigobar.

Como ele tinha aprendido português me escapava. Acho que ele, sem trocadilho, buscava alimento para o espírito, além do mais se aquele era um fantasma que bebia, como ele adquiriu conhecimento de nosso idioma parecia uma questão irrelevante.

Sabia apenas que lia e comentava comigo acerca dos estilos e vozes de cada um dos autores. E eu conversava animadamente com ele sempre que aparecia. Ao ser indagado acerca do pós-vida de um escritor ele falava da turma que, tirando Hemingway e Bocaccio, conseguia ser incrivelmente chata, principalmente os poetas narrativos e alguns novelistas russos. Nada diferente de uma reunião da ABL, com a vantagem de que no paraíso dos escritores alguns deles pareciam mais vivos que os nossos imortais.

Escolheu um dos volumes mais grossos de cima da mesinha, que deve ter agradecido pelo peso retirado, e imaginei que ia reter sua atenção por um bom tempo, impedindo-o de interromper a minha leitura com conversas literárias.

Sou o mais exigente quanto ao ambiente propício para ler, detesto salas com mais de uma pessoa, com a TV ligada nem pensar. Música ou qualquer outro som só numa altura limítrofe entre o infra-sônico e o ruído de fundo, por isso sou tão chato e não leio em bibliotecas; minha atenção se vai com um alfinete caindo e sempre tem algum celular soando um toque estapafúrdio.

Ele pega uma cerveja no meu quarto e se instala confortavelmente em outro sofá na minha frente. Fora o virar das páginas ele não faz ruído algum, ainda bem. Depois de tantas vezes em sua companhia, começava a me acostumar com ele, a ler tendo alguém mais a minha volta.

Que cena! Eu e o velho Buk lendo ali, mal percebemos quando surge um sujeito magro e de cabelos curtos, de jeans e camisa azul, que subia as escadas, e parou no nosso andar. Ele viu a pilha de livros dos temas mais variados, se aproximou da mesinha de centro e mexendo na pilha escolhe um deles e sai.

“Ei, onde que tu tá pensado que vai com esse livro?” foi assim que o repreendi.

“Vou ler esse aqui”, me respondeu o sujeito.

“Vai ler merda nenhuma! Nem me pediu autorização e eu não te emprestei. Isso aqui não é biblioteca pública. Esses daqui tu não vai encontrar nas livrarias desse arquipélago nem que a vaca tussa.”

“Eu pensei que podia ler”, diz ele.

“Pode o escambau, seu folgado. Nem te conheço e já vai tomando liberdade... Se ainda fosse sentar aqui e pedir emprestado primeiro.”

“Todos esses são teus?” indagou o recém chegado.

“Sim. Todos eles. Por quê?”

“Até esse que o cara aí tá lendo?” continuou ele.

“Sim,” respondi de novo secamente.

“Não sabes quem sou?” me pergunta ele. Reparei que não havia em sua voz aquele tom nojento de carteiraço, que as pessoas usam para salientar a sua importância e notoriedade.

“Claro que não, nunca te vi na minha vida.”

“Sou um fantasma como ele. Talvez já tenha lido algo que escrevi, eu fui filósofo. Francis Bacon era o meu nome.”

“Ah, tá! Desculpa, Chico. Fica a vontade, não te reconheci sem a peruca branca de cachinhos.”

E assim ficamos os três, um vivo e dois fantasmas, lendo, quietos, até o sol brilhar com força lá fora, com o movimento da cidade adquirindo intensidade e os garçons e auxiliares de cozinha iniciarem o serviço de café da manhã no grande salão de refeições do último andar.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Proibidão #1

Após dançarem até quase perderem os sentidos, os dois pararam, pois necessitavam de água. Os corpos novamente hidratados e exaustos ainda assim conservavam as suas belezas. Cada uma a seu jeito sentia tesão pelo outro; ela era loira e ele tinha poucos cabelos na cabeça raspada.

“Quero te foder aqui mesmo, como um animal”, disse ele, entrecortado pelo ritmo hipnótico da música. “Vem que eu tô sem calcinha”, ela disse já procurando o pênis dele por cima da calça. Empurrou-a para um canto. Ele abriu o zíper e penetrou-a, antes da música acabar já tinha gozado. Nesse momento ela queria mais e mais.

Ele a entrelaçou em seus braços e disse que também queria mais, mas não agora e não ali. Ela cuspiu na cara dele e ele juntou o cuspe na mão e passou na cabeça de baixo e a currou por trás. Ela gemia e gemia e pedia para ele parar. A música parou e outra não recomeçou.

Dois gigantescos seguranças do evento o ejetaram o mais rápido possível do recinto. Parecia que estavam em uma orgia particular, mas não! Era um baile de formatura. Os dois loucos como sempre haviam feito mais uma ceninha do teatro do absurdo que era aquele relacionamento doentio.

“Comer meu rabo foi um pouco demais para aquela festa careta, seu maníaco abjeto”, reclamou ela.

“Se eu não fosse maníaco você não daria nunca para mim.”

“Se aquele merda do Gugu colocar isso na coluna dele outro dia, eu te arranco a bola direita”, ameaçou a garota.

Ele tentou tranqüilizá-la, “Não vai sair, eu te garanto! Prometo que não faço isso de novo.”

“E não vai mesmo, seu filho da puta”, ela disse de forma que ele já estava excitado de novo. “E baixa essa vara que já me estourasse toda hoje. Credo, tô me sentindo como uma puta.”

“Agora tu sabe como tua mãe se sente”, gargalhou ele. “Então vem aqui, sua vadia e termina o serviço. Pelo menos chupa, eu sei que tu gosta.”

Quando estava quase gozando, ela pediu: “Bem na minha cara, seu filho da puta, e depois espalha pelos meus peitos!”

Ele não obedeceu e esporrou na boca da garota. Ela se engasgou e tossiu. E um pouco de porra escorreu pelo seu queixo. “Filho da puta!” exclamou ela, soqueando o peito dele.


Quanto a ele, já não sabia se era parte da brincadeira ou se era um protesto genuíno. Achou melhor deixar para lá e foi tomar banho.


No início da semana, ela o procurou desesperada. “Saiu no jornal, aquela bicha maconheira publicou numa nota. Seu merda! Entrei para trabalhar e todos me olharam como se eu tivesse a peste.”


“Que que eu posso fazer?” indagou ele sem convicção. “Relaxa, isso passa.”

“E se isso tivesse acontecido com a lésbica da tua irmã, me diz? A tua mãe ia ao delírio!”, ela disse quase espumando.


Numa cidade tão provinciana como aquela não restava mais nada para ela do que se mudar, e para bem longe. E nunca mais ver aquele tarado. Foi o que fez.

Ele ainda é lembrado, mesmo durante meses após o fato, e procurado por várias mulheres, que pelo menos têm a decência de dar para ele em lugares um pouco mais privados. Ele nem se lembra mais dela direito. Ela nunca mais fez sexo anal com ninguém.